ABNA brasil: Nesta carta, Amir al-Mu'minin (A.S.) define a justiça social não como um favor pessoal do governante, mas como um dever estrutural e económico do governo. Ele ordena a Mālik que atribua uma parte específica e permanente do tesouro público (Bayt al-Māl) e também uma parte dos "rendimentos das terras estatais" em cada região para a classe desfavorecida da sociedade: "os indigentes, os necessitados, os desvalidos e os incapacitados" (al-masākīn, wa al-muḥtājīn, wa ahl al-bu'sā, wa al-zamaná).
وَ اجْعَلْ لَهُمْ قِسْماً مِنْ بَیتِ مَالِک، وَ قِسْماً مِنْ غَلاَّتِ صَوَافِی الْاِسْلاَمِ فِی کُلِّ بَلَد
(E designa para eles uma porção do teu Tesouro Público e uma porção dos rendimentos dos lucros das propriedades estatais (ṣawāfī al-Islām) em cada cidade.)
Esta ordem significa a institucionalização da ajuda aos indigentes no orçamento geral e nas receitas estatais puras (ṣawāfī al-Islām). Esta abordagem eleva a questão da pobreza e da vulnerabilidade da esfera da "caridade supererrogatória" para a de "direitos públicos obrigatórios"; um direito que a autoridade é obrigada a preservar:
وَ احْفَظِ لِلَّهِ مَا اسْتَحْفَظَک مِنْ حَقِّهِ فِیهِمْ
(E guarda, por Deus, o que Ele te encarregou de guardar do Seu direito neles.)
O ponto chave e surpreendente nesta ordem é a sua natureza abrangente. Este direito é considerado igual para todos os necessitados, tanto para aqueles que estão "próximos" do centro do governo como para aqueles que estão "distantes": "Pois aqueles que estão longe têm a mesma quota que aqueles que estão perto."
Portanto, este comando estabelece, na prática, um sistema abrangente e não discriminatório de segurança social que considera o dever do Estado garantir um nível mínimo de subsistência para todos. Com esta perspetiva, os pobres deixam de ser recetores de uma doação por piedade, mas sim detentores de um direito que a estrutura governamental é obrigada a cumprir.
No entanto, este é apenas o primeiro passo; o passo seguinte é encontrar aqueles que nem sequer têm a capacidade de reivindicar este direito.
O Governante Deve Ir ao Encontro dos Sem Voz
Um dos maiores desafios de qualquer administração é ouvir a voz daqueles que, por várias razões — como vergonha, estigmatização social ou incapacidade física — não conseguem fazer chegar os seus problemas aos responsáveis. Para este dilema, Amir al-Mu'minin (A.S.) oferece uma solução proativa e progressista.
Ele exige que o seu governador não espere que o necessitado venha até ele, mas que o próprio governante seja um procurador:
تَفَقَّدْ أُمُورَ مَنْ لَا يَصِلُ إِلَيْكَ مِنْهُمْ
(Investiga ativamente as condições daqueles que não conseguem chegar até ti), aqueles que "os olhos acham desagradáveis e os homens desprezam"
A solução prática oferecida na carta é a criação de um mecanismo preciso para esta procura. Mālik é obrigado a selecionar indivíduos "confiáveis, tementes a Deus e humildes" para encontrar estas pessoas anónimas e relatar a sua situação diretamente a ele. Esta ordem visa especificamente outros dois grupos: "os órfãos" (ahl al-yatm) e "os idosos incapacitados que não têm recurso algum" Estes indivíduos são destacados porque perderam o seu sistema natural de apoio social (a família) e, consequentemente, o governo torna-se o seu principal pilar e defensor.
Esta abordagem é a base de um sistema de inspeção social para descobrir a pobreza oculta. Nesta perspetiva, a responsabilidade é retirada do indivíduo necessitado e colocada sobre o governo. O governo é obrigado a remover os obstáculos e a chegar aos cidadãos esquecidos, e não o contrário. Esta procura ativa remove a barreira da invisibilidade. O passo seguinte é derrubar as barreiras físicas e psicológicas do poder para aqueles que conseguem chegar ao governante.
Para Ouvir a Verdade, as Paredes do Poder Devem Ser Derrubadas
Os símbolos de poder, como guardas, procedimentos complexos e paredes altas de escritórios, são o maior obstáculo para a comunicação honesta entre o povo e os governantes. Amir al-Mu'minin (A.S.), numa das suas instruções mais revolucionárias, ordena que estas paredes sejam derrubadas. Ele instrui Mālik al-Aštar a dedicar um tempo específico para o encontro público com os necessitados e a remover todas as manifestações de poder nessa sessão:
(Afasta deles os teus soldados e assistentes, incluindo guardas e forças de segurança.)
O objetivo é criar um ambiente seguro e sem medo para que o porta-voz do povo possa falar "sem hesitação ou gaguejar" (ghayr mutatamtic). A importância disto é tanta que Amir al-Mu'minin (A.S.) a liga a um princípio fundamental para a felicidade da sociedade, citando o Profeta (S.A.W.):
"Uma comunidade na qual o direito do fraco não é tomado ao poderoso com clareza nunca verá santidade e felicidade."
Esta instrução não é um gesto de humildade, mas uma necessidade para a concretização da justiça. A segurança psicológica do cidadão para expressar o seu direito é a pré-condição para uma sociedade saudável e sagrada. Uma sociedade na qual o fraco tem medo de expressar o seu direito nunca alcançará a pureza e a salvação. Mas esta humildade não se limita à remoção dos guardas e deve manifestar-se também na paciência e tolerância do governante.
Nenhum Trabalho É Tão "Importante" Que Justifique Ignorar um Ser Humano
Uma das justificações comuns de gestores e governantes para a negligência dos problemas individuais é a imersão em trabalhos macro e estratégicos. Eles consideram frequentemente lidar com questões individuais como um trabalho "pequeno" e sem importância que lhes tira tempo dos assuntos "importantes". Amir al-Mu'minin (A.S.) rejeita categoricamente esta desculpa:
فَإِنَّک لَا تُعْذَرُ بِتَضْییعِک التَّافِهَ لِإِحْکامِک الْکثِیرَ الْمُهِمَّ
(Pois não serás desculpado por negligenciares o que é insignificante sob o pretexto de estares a consolidar o que é muito importante.)
Isto significa que lidar com trabalhos grandes e importantes nunca é uma licença para desperdiçar os direitos pequenos e aparentemente sem importância dos indivíduos.
Esta visão profunda é acompanhada por recomendações complementares. O governante deve tolerar a "rudeza e a lentidão na fala" dos necessitados e afastar de si a intolerância e a arrogância. Mesmo que recuse um pedido, isso deve ser feito com "gentileza e desculpa" (ijmāl wa i‘dhār). Este ponto é crucial, pois demonstra que o sistema de governação é obrigado a preservar a dignidade e a humanidade do cidadão mesmo no momento da recusa ou objeção — um conceito que muitas vezes se perde nas rejeições secas e frias da burocracia moderna.
A importância deste princípio é dobrada no mundo de hoje. É uma luta direta contra uma visão que reduz os seres humanos a estatísticas e lembra que, no sistema de valores Divino, o direito e a dignidade de um indivíduo têm a mesma importância que os maiores projetos nacionais. Nenhum objetivo, por maior que seja, pode ser uma desculpa para pisotear o direito de um ser humano.
Governar para a Humanidade, Não para o Poder
Esta carta estabelece os quatro pilares de uma governação humana e justa:
- Justiça Sistémica em vez de uma abordagem baseada na caridade.
- Procura Ativa dos Desfavorecidos em vez de esperar que eles venham.
- Remoção das Barreiras do Poder para ouvir a voz direta do povo.
- Priorização da Dignidade Individual em detrimento da desculpa de trabalhos macro.
A mensagem final desta carta é que o objetivo do governo é criar uma sociedade onde o indivíduo mais fraco também se sinta seguro e digno. Esta responsabilidade é um dever pesado (wa al-ḥaqqu kulluhū thaqīl), mas Deus facilita o seu peso para aqueles que creem num bom resultado e estão certos das promessas Divinas.
Fonte: Site Tebyān.
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