Segundo a agência Abna Brasil: qual é o critério corânico para estabelecer relações internacionais? Nos últimos anos, tem sido frequentemente questionado por que a República Islâmica do Irã mantém ruptura e inimizade com Israel e os Estados Unidos, enquanto preserva relações e amplia laços amistosos com a Rússia, a China e outros países. A abordagem diferenciada diante desses dois grupos de nações — embora nenhuma delas seja muçulmana — possui fundamento corânico?
É natural que qualquer nação, no cenário internacional, tenha amigos e inimigos. O que importa é o tipo de relação com cada um deles, e, ainda mais importante, o critério que define amizade e inimizade, bem como o grau de cada uma. Como a fonte de extração dos princípios, fundamentos e normas comportamentais da Ummah islâmica e dos governos islâmicos encontra-se no Alcorão Sagrado e na Sunnah do Profeta (s.a.w.), é clara a posição desses dois recursos valiosos na análise e resposta a esse tipo de questão.
Entre os versículos que tratam das diretrizes da política externa dos muçulmanos em relação a estrangeiros e inimigos, encontram-se os versículos 8 e 9 da Surata Al-Mumtahanah [1], que explicitamente expõem o critério para estabelecer ou romper relações com estrangeiros.
O contexto da revelação e a mensagem principal da Surata Al-Mumtahanah
Os versículos da Surata Al-Mumtahanah enfatizam que a busca de interesses por meio de relações secretas com os inimigos da religião constitui um desvio e uma conduta infrutífera [2]. Pelo contexto revelado, entende-se que alguns dos muçulmanos emigrados mantinham amizade secreta com os politeístas de Meca, motivados pelo desejo de obter apoio deles em favor de seus parentes e filhos que ainda permaneciam na cidade [3].
Sobre a causa da revelação dos versículos iniciais da Surata, narra-se que um dos muçulmanos emigrados, chamado Hatib ibn Abi Balta‘ah, encontrava-se em Medina, enquanto sua família permanecia em Meca, sem nenhum parente que os protegesse. No oitavo ano da Hégira, após a violação do pacto por parte dos politeístas, o Profeta (s.a.w.) decidiu marchar em direção a Meca.
Antes da partida dos muçulmanos para a Conquista de Meca, Hatib escreveu uma carta e a entregou a uma mulher chamada Sara, pedindo que a levasse aos habitantes de Meca, para informá-los da marcha do Profeta (s.a.w.), acreditando que assim protegeria sua família. Contudo, o Profeta (s.a.w.) tomou conhecimento desse ato de espionagem e encarregou o Imam Ali (a.s.), Zubair e Miqdad de deterem a mulher.
Eles a encontraram no caminho entre Medina e Meca. Ela negou a acusação; revistaram seus pertences e nada encontraram. Alguns decidiram retornar, mas o Imam Ali (a.s.) declarou: “Nem o Profeta nos diz mentira, nem nós mentimos.” Irritou-se com a mulher, e então Sara retirou a carta que escondia entre os cabelos. O Profeta (s.a.w.) convocou Hatib.
Hatib, pedindo desculpas e reafirmando sua fidelidade, declarou que sua intenção era apenas proteger sua família. Foi nesse contexto que a Surata foi revelada, proibindo severamente os muçulmanos de manter amizade com os inimigos; tanto os versículos iniciais quanto os finais da Surata se referem a esse tema, impedindo a amizade com eles [4].
Relação com estrangeiros não hostis
Os versículos 8 e 9 da Surata Al-Mumtahanah dividem claramente os estrangeiros (não muçulmanos) em dois grupos e definem o modo de relacionamento da Ummah com cada um deles. Segundo esses versículos, não há impedimento algum em se relacionar com estrangeiros que não adotem condutas hostis contra os muçulmanos. O versículo 8 afirma:
“Allah não vos proíbe de serdes bondosos e justos para com aqueles que não combateram contra vós por causa da religião, nem vos expulsaram de vossas casas. Em verdade, Allah ama os equitativos.” [5]
Rompimento de relação com estrangeiros hostis
O versículo 9 da Surata define as características dos inimigos com os quais o vínculo deve ser rompido:
“Allah somente vos proíbe de tomar por amigos aqueles que combateram contra vós por causa da religião, e vos expulsaram de vossas casas, e colaboraram na vossa expulsão. E quem quer que estabeleça amizade com eles — esses são os injustos.” [6]
Características dos estrangeiros hostis
O versículo 9 utiliza o termo “innamā” — indicador de exclusividade — e restringe o rompimento das relações àqueles inimigos que possuam as seguintes características:
- Combatem-vos por causa de vossos valores e crenças religiosas: “qātalūkum fī d-dīn”;
- Privam-vos de vossos direitos naturais e legítimos: “akhraju-kum min diyārikum”;
- Formam alianças contra vós com o intuito de vos prejudicar: “ẓāharū ‘alā ikhrājikum”.
Assim, as três razões para o rompimento dos laços são:
- agressão motivada pela religião;
- privação de direitos essenciais;
- formação de coalizões hostis.
Desse modo, se o estrangeiro não agredir os muçulmanos, nem for hostil, o versículo não o inclui; em outras palavras, há distinção entre o estrangeiro opositor e o não opositor [7].
Rompimento mesmo em condição de trégua (paz)
A precisão das palavras no versículo:
“Aqueles que combateram contra vós por causa da religião, vos expulsaram de vossas casas e se auxiliaram mutuamente em vossa expulsão…” [8]
— expressas no passado e não no presente — indica que o inimigo já materializou e comprovou sua hostilidade por meio de ações concretas, ainda que no momento não esteja em guerra aberta. Ou seja, o versículo estabelece o rompimento com o inimigo mesmo em época de paz; pois, em situação de guerra, a postura não seria apenas romper vínculos, mas tomar medidas militares, como afirma:
“E matai os politeístas onde quer que os encontreis, capturai-os, cercai-os e vigiai-os em toda emboscada.” [9] [10]
Conclusão
- O critério das relações internacionais, segundo o Alcorão, não é a fé ou a descrença das nações, mas o comportamento delas para com a comunidade e o governo islâmico. Assim, o estabelecimento de relação com inimigos depende de abandonarem suas ações hostis.
- Os versículos 8 e 9 da Surata Al-Mumtahanah deixam claro que o tipo de relação com estrangeiros depende do comportamento deles: se não forem hostis, não há impedimento na relação; porém, se insistirem na hostilidade, o vínculo é proibido.
- Ingressar em coalizões com governos cuja inimizade seja comprovada, bem como alianças com Estados que possuam histórico de conspiração contra o Islã e os muçulmanos, contradiz os ensinamentos corânicos.
Referências
[1] Sobre a nomeação da Surata Al-Mumtahanah, ver: Tabrisi, Majma‘ al-Bayān, v.9, p.410; Qurtubi, Al-Jāmi‘ li-Aḥkām al-Qur’ān, v.18, p.49; Ibn Hajar, Fatḥ al-Bārī, v.8, p.633; Khorramshahi (org.), Dāneshnāmeh-ye Qur’ān, v.2, p.1255.
[2] Qaraati, Tafsir-e Noor, v.9, p.575.
[3] Tabataba'i, Al-Mizān, v.19, p.226.
[4] Makarem Shirazi, Tafsir-e Nemuneh, v.24, p.9; Ibn Khaldun, Tārīkh, v.1, p.441.
[5] Surata Al-Mumtahanah, 8.
[6] Surata Al-Mumtahanah, 9.
[7] Imam Khamenei, Tafsir Surata Al-Mumtahanah, 2020, seções 2, p.7, 14, 51.
[8] Surata Al-Mumtahanah, 9.
[9] Surata At-Tawbah, 5.
[10] Tabataba'i, Al-Mizān, v.19, p.234.
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